A recente demissão do primeiro-ministro português António Costa, aliado à decisão de manter o governo de pé por mais quatro meses até às próximas eleições de 10 de março de 2024, colocam riscos. A governação do país fica assim em autogestão, com um governo limitado apenas aos atos “inadiáveis” e “estritamente necessários”, nos termos do Tribunal Constitucional que apreciou o novo contexto político.
Assim sendo, e tendo em conta que tínhamos um governo vocacionado para uma governação de longo prazo e com várias medidas estratégicas, com o aumento do salário mínimo, diminuição do IRS, e outras medidas, o que poderá estar em risco? Vamos dizer-lhe o que esperar da governação portuguesa durante os próximos meses.
Governo demissionário quando o OE 24 vai ser aprovado. O que significa?
Esta situação não é propriamente recente, já observámos o mesmo filme no final de 2021. Na altura, com um governo apoiado pela geringonça tivemos uma situação de não aprovação do OE o que fez cair o governo.
Na prática, a convocação de eleições antecipadas permitiu manter um governo de autogestão em que a renovação de projetos de lei antigos e a preparação de alguns dossiers fundamentais, como a lei da Eutanásia, foi possível. O que está agora em causa com o novo OE 24?
Desde logo a execução dos fundos do PRR, depois a revisão dos estatutos das ordens profissionais, a lei do tabaco ou a legislação sobre violência sexual.
Ainda que o governo esteja demissionário, isso não significa que algumas das matérias fundamentais de governação não venham a ser aprovadas ao nível do Parlamento. O que poderá depois acontecer com a eleição de um novo governo em março de 2024 e enquanto está em vigor o novo Orçamento de Estado é a aprovação de orçamentos retificativos quando se trate de mexer nas finanças públicas.
Por que o OE 24 está garantido, mas algumas medidas não poderão ser aprovadas?
O Orçamento de Estado de 2024 não corre riscos de ser aprovado porque temos um governo maioritário do Partido Socialista que continua a depender apenas de si para a sua aprovação. Além disso, Marcelo só aceita a demissão do PM, e consequente gestão dos mínimos no país, a partir de Dezembro. O que significa que o PS, ao nível da Assembleia da República, terá a possibilidade de aprovar o Orçamento de Estado e de garantir algum nível de estabilidade governativa para 2024.
O que não poderá aprovar em termos de leis e iniciativas? Assuntos que implicam concordância interpartidária dentro do Parlamento, como a revisão constitucional ou a lei dos metadados, não poderão avançar. Outros assuntos de gestão estratégica económica, como as iniciativas estratégicas de injeção de dinheiro do PRR em grandes obras públicas, equipamentos tecnológicos, ou licenciamentos que transformariam o tecido económico português, poderão também estar em causa.
Medida da Revisão Constitucional terá de ser adiada
A Revisão Constitucional é uma matéria que exige, pela sua natureza, um amplo consenso político e que reúna – no mínimo – a aprovação de PS e PSD na Assembleia da República. Uma vez que se trata de mudar a lei fundamental do nosso país, o governo de maioria absoluta de António Costa tinha legitimidade suficiente para alterar alguns termos da constituição. Com o objetivo de consagrar direitos dos animais, alterar a carga ideológica do espírito da constituição para prever matérias de proteção do ambiente, ou flexibilizar o sistema económico.
Agora, a Revisão Constitucional fica necessariamente adiada até que haja condições de estabilidade política para retomar o tema. O líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, foi quem confirmou aos jornalistas que já não havia condições para avançar com esta matéria.
O PS e o PSD, desde o início de 2023, que vinham falando das suas prioridades a aprovação da Revisão Constitucional. Uma dessas matérias tinha a ver com a lei dos Metadados, nomeadamente para efeitos de controlo sanitário e para efeitos de perícias judiciais. Como se sabe, é ainda inconstitucional a consulta e tratamento de dados digitais de tráfego ou localização para tratar este tipo de temas.
Leis eleitorais
Outra matéria de aprovação urgente tem a ver com a das leis eleitorais. Nomeadamente a matéria do voto por correspondência parece ser o mais urgente.
Pretendia-se com esta iniciativa agilizar o voto por correspondência para emigrantes, o voto digital, e o voto antecipado. Também ficaríamos com condições para desenvolver um sistema digital de votações que poderia entrar em vigor durante qualquer processo eleitoral.
Claro que estas iniciativas comportam riscos inerentes e só poderiam ser aprovadas com um enquadramento seguro relativamente às infraestruturas. Ainda assim, esta lei poderia ser decisiva para resolver o grave problema da abstenção em Portugal, agilizando deslocações, votações e acelerando a digitalização dos processos do Estado.
Lei da proteção dos animais
Inês de Sousa Real, líder do PAN, considerou recentemente que a lei que criminaliza o abandono e maus tratos a animais de companhia corre riscos sem um enquadramento constitucional. É por isso que a Revisão Constitucional que se procurava implementar tinha aqui mais uma janela de oportunidade para defender os animais de companhia.
De lembrar que a lei sobre a criminalização de maus tratos a animais de companhia data de 2014, mas o Tribunal Constitucional poderá pronunciar-se desfavorável a ela sem o devido enquadramento constitucional.
Segundo defende a líder do PAN, “a inclusão da protecção dos animais na Constituição reveste-se de carácter fundamental para uma maior segurança jurídica e para a atribuição de dignidade constitucional aos demais seres vivos com quem partilhamos o planeta, não só pela questão do risco que correm actualmente as normas criminalizadoras dos maus-tratos a animais, mas como imperativo ético essencial numa sociedade moderna”.
IRS baixa mesmo em janeiro com manobra presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa
Uma das dúvidas relativamente à demissão de António Costa tinha a ver com a aprovação dos novos escalões do IRS, que vinham trazer descidas generalizadas no pagamento de impostos. Marcelo Rebelo de Sousa foi precavido a este nível, tendo por optado apenas pela formalização da demissão do PM em Dezembro de forma a que se consiga aprovar o OE de 2024.
Assim, com o Orçamento de Estado assegurado, o governo terá a capacidade de aprovar as tabelas de retenção na fonte que permitirão a grande parte das famílias ter mais rendimento disponível ao fim do mês.
Por exemplo:
- Para quem aufira 1.480 por ano (mais subsídios de férias e de natal), terá isenção de IRS;
- Terá mais rendimento líquido disponível.
Nestes casos, um salário que até aqui era de 760€ passará a ser de 820€ mensais. Isto é uma folga importante para as famílias que irá mesmo ter efeitos com a aprovação do OE 24 para breve.
O que poderá acontecer ao Orçamento de Estado com o novo governo de 2024?
A verdade é que vamos estar perante uma situação de aprovação do Orçamento de Estado. Só que por um governo que será gerido por um novo governo a eleger em março. E isso poderá ser um fator de instabilidade para os portugueses, embora não seja necessariamente mau. Vamos ver vários cenários.
Se o PS for novamente eleito com maioria absoluta em 2024?
Imaginemos que os portugueses voltam a votar no PS em massa e garantem-lhe a maioria absoluta. Nesse caso, independentemente de o novo Primeiro Ministro socialista ser Pedro Nuno Santos ou outro dirigente, teremos um cumprimento escrupuloso do Orçamento de Estado. Além de que iremos observar um retomar das linhas estratégicas de desenvolvimento económico e industrial do nosso país.
Neste caso pouco mudará relativamente aos destinos do país com António Costa, com uma renovada energia, legitimidade e um diferente estilo de governação.
Se o PS for eleito sem maioria absoluta?
Este é um cenário provável. Que implicará acordos de incidência parlamentar para que seja possível a governação do país. à semelhança do que aconteceu com a geringonça em 2016.
Se o PS não conseguir obter a maioria absoluta, terá de negociar com a esquerda parlamentar. A tarefa é historicamente difícil, pelo será necessário fazer concessões.
Outra das possibilidades é um acordo PS com PSD, embora isso possa alienar eleitorado socialista. Além de que trará instabilidade e perigos para o próprio PS. É, por isso, um cenário um pouco mais improvável.
No caso de o PS não conseguir formar uma maioria de incidência parlamentar, será a possibilidade ao segundo partido mais votado de formar maioria. Ou então dar-se-á a repetição das eleições.
Se a composição eleitoral for incerta sem maiorias para ninguém nas eleições de 2024?
Embora PS e PSD devam liderar nas eleições, nada garante que tudo fique igual. Iremos com certeza ver a direita a subir, mas também não é de descurar algumas surpresas na composição parlamentar à esquerda. Nomeadamente, com um reforço das votações no BE ou no Livre, por virtude de uma maioria simpatia pelos seus líderes.
Em caso de incertezas nas próximas eleições, terão de ser negociadas coligações à esquerda, centro e direita.