milei argentina

Foi na tomada de posse, e de costas voltadas para o congresso da Argentina, que Javier Milei preparou caminho e alinhou expectativas para os anos difíceis que os argentinos vão enfrentar. O underdog que ganhou de forma surpreendente as eleições presidenciais na Argentina quer agora privatizar vários setores do Estado e desregular a economia, mas isso trará uma fatura muito cara para os cidadãos. Como o próprio admite.

Fazendo lembrar os anos da Troika em Portugal depois da última crise económica de 2011, Milei diz que os argentinos devem-se preparar para uma “estaglafação”. Ou seja, uma inflação, com estagnação económica, aumento do desemprego e da pobreza. Será o neoliberalismo em esteróides de Milei a resposta para a crise na Argentina?

A herança de Milei e o liberalismo

Milei disse na tomada de posse enquanto novo presidente argentino que iria receber uma “herança pesada” nas suas mãos. Referia-se a uma herança de mais de uma década de peronismo, em que o PIB contraiu, a inflação disparou, e a pobreza também. Foi com votos de protesto mas também esperança que os leitores escolheram algo radicalmente diferente, e viram em Milei essa figura absolutamente oposta ao sistema, ou “status quo”.

Mas Milei diz agora que os eleitores se devem preparar para “passar um mau bocado”, e que isso é condição necessária antes de se “começar a reconstrução”.

Lembremo-nos que em Portugal, durante os anos de intervenção da Troika, tivemos uma abordagem de liberalização de mercado e redução de direitos sociais, que ainda assim foi bastante suave em comparação com que se prepara para fazer na Argentina.

Por aqui, empresas estratégicas como a EDP foram vendidas, com Portugal a perder soberania energética nesse campo. O trabalho perdeu valor, com uma depreciação acentuada dos salários e aumento de pobreza. Fim de alguns subsídios com aplicação de uma lógica de salário a duodécimos que dava a sensação falsa de aumento de poder de compra. Mas o que se prepara para fazer na Argentina será muito mais radical.

A revolta de Milei contra o Estado Social e o peronismo

Austeridade na Argentina

Na sua tomada de posse enquanto novo presidente Argentino, Milei disse o seguinte:
“Nenhum Governo recebeu pior herança do que a que estamos a receber”. E por isso identifica como “máxima prioridade” fazer “todos os esforços possíveis para evitar semelhante catástrofe que levaria a pobreza a superar os 90% e a indigência acima dos 50%”.

Assim, Milei promete “ajuste” e “choque” para iniciar o caminho da retoma da Argentina. Diz ele que “a situação da Argentina é crítica e de emergência. Não há alternativas e não há tempo, precisamos de ação imediata”.

Parece que o facto de Milei falar claro e abordar sem rodeios as dificuldades que a população argentina vai enfrentar sob o seu comando são tidas com agrado. Ele refere claramente que as suas medidas “terão impacto negativo” sobre a atividade económica, o emprego, o salário, na pobreza. Ou seja, será tudo mau, mas isso será também necessário para relançar a economia.

A herança peronista do Estado Social de Alberto Fernández e de Cristina Kirchner

Javier Milei identifica a herança peronista que recebeu em mãos como 12 anos de destruição do Estado argentino. Segundo ele:

  • O PIB caiu em 15%.
  • A inflação subiu em 5.000%.

É por isso que a liberalização de toda a economia é tida como inevitável e até desejável por Milei. A Argentina deverá assim começar a vender setores estratégicos da sua atividade económica a privados, deverá desregular as condições de trabalho, reduzir subsídios sociais e financiamento do Estado, ficando no fim com o ideal liberal do Estado Mínimo. E isso será uma autêntica terapia de choque que Milei quererá aplicar o mais rapidamente possível. Mas a que custo?

O que vai significar as políticas liberais de Javier Milei?

O caminho de liberalização do tecido económico argentino irá ter como pilares a desvalorização do peso argentino, com uma desregulação da atividade económica e nas importações e exportações. Esse será o “novo contrato social” de Milei, que não irá tolerar revoltas ou manifestações de rua contra as políticas duras que irá implementar.

Outro dos fenómenos que poderemos vir a observar no médio prazo tem a ver com emigração económica face ao recrudescimento das relações sociais e da pobreza. Poderemos começar a observar uma diáspora das populações mais fragilizadas em direção ao Chile ou ao Uruguai, mas também em movimentos coordenados de emigração para a Europa. Os mais desprotegidos poderão ainda ser tentados em perseguir as rotas da migração clandestina para os Estados Unidos. Uma opção que é em tudo altamente perigosa.

O que é a “estagflação” e por que irá significar pobreza na Argentina?

A “estagflação” é um termo económico que foi introduzido no vocabulário político em 1965 por um político britânico. Mas seria relançado e popularizado já nos anos 1970, durante a crise do óleo nos Estados Unidos que criou uma recessão durante cinco trimestres consecutivos e fez atingir uma taxa de desemprego de 9%.

A estagflação é por isso um dos fenómenos de criação de pobreza e que traz desafios elevados para evitar a desagregação social e os protestos de rua. Poderíamos designar a estagflação do seguinte modo:

  • Caracteriza-se por uma abrandamento da economia, por taxa de desemprego elevada e por aumento generalizado dos preços.
  • Não há respostas fáceis para combater a estagflação, que tendo a impor-se por largos meses ou até anos numa economia. A injeção de capital na economia e o relançamento do mercado interno é vista como uma das soluções (um “new deal”), mas isso implica aumento da despesa do Estado e da dívida pública.

O que irá provocar a “estagflação” na Argentina e a generalização da pobreza?

Em receita perfeita para a “estagflação” dá-se com um conjunto de medidas de austeridade. Quanto mais o Estado se demover do seu papel de regulador da economia, protetor dos salários e do poder de compra, mais fácil será para qualquer país cair na armadilha da estagflação. E é nesse buraco sem fundo que a Argentina poderá cair em breve.

Custos energéticos e macroeconomia

O aumento dos custos energéticos que deriva do aumento dos preços do crude / petróleo, mas também da desestabilização das cadeias logísticas ou do controlo da produção interna de energia, são um dos motores para a estagflação.

Podemos olhar para a crise do petróleo de 1970, com o conjunto dos países produtores da OPEC a imporem um embargo nas exportações para os países ocidentais, o que provocou uma subida generalizada dos preços e em geral uma espiral de problemas que levou a desemprego em massa.

Com as cadeias logísticas desestabilizadas, os preços de todos os produtos aumentaram e impôs-se uma espiral inflacionista. Em parte foi isso que aconteceu também com a guerra da Rússia à Ucrânia em 2022, que provocou problemas no abastecimento de gás russo e foi um contribuinte importante para a inflação que se impôs nos vários países europeus e nos EUA.

Políticas económicas pouco robustas

Outro dos aspetos relacionados com a promoção da estaglação tem a ver com um conjunto de políticas económicas que estão associadas à austeridade e que combinam: estagnação / contração da economia com inflação – dois dos piores males que todos os países querem evitar.

Os ambientes inflacionistas têm muitas vezes origens externas, em que o preço dos bens e da energia dispara. A resposta por vezes é imprimir dinheiro, mas isso deprecia o valor da moeda local e retira poder de compra das pessoas, levando a uma contração do consumo interno e a prazo também a estagnação do PIB se a atividade económica não for estimulada.

Podemos olhar para o que aconteceu durante o mandato de Richard Nixon enquanto presidente norte-americano em 1970. Depois de uma espiral inflacionista e contração acelerada do mercado interno, ele viu-se obrigado a implementar taxas para as importações ao mesmo tempo que protegeu os salários, tentando contraria o adensar da estagflação.

É por isso inevitável ter um Estado intervencionista e com poder de regulação do mercado interno e da economia para se conseguir evitar a destruição do PIB e do tecido económico do país.

Será que Milei conseguirá sair do cenário anunciado de estagflação?

Como vimos, é o próprio presidente argentino a admitir um cenário de estagflação que assolará o país. O problema é que não há um antídoto claro e eficaz contra a estagflação, que se impõe nas economias como um vírus no corpo humano. Sendo necessário um sistema imunitário robusto que não existe quando foi aplicada a liberalização da economia.

Os economistas dizem que, para resolver a estagflação, é necessário aumentar significativamente os índices de produtividade do país. Isso conduzirá a economia ao crescimento e à superação da inflação. Isso é o primeiro passo para que as políticas monetárias possam ser revertidas no sentido de revalorizar a moeda. E esse é um dos passos decisivos para sair do cenário de austeridade.

Contudo, a tarefa de Milei neste sentido não será nada fácil. Ele terá de reconstruir à partida reservas do banco central que está absolutamente descapitalizado em cerca de $10 mil milhões. E isso é condição para que circule capital nos bancos comerciais e na economia.

Por outro lado, Milei enfrenta uma taxa de pobreza de 40% no seu país. E terá de dar resposta a um programa de intervenção do FMI que injetou $44 mil milhões na Argentina.

Citado pela Reuters, um economista da Fundação para a Liberdade e Progresso, Lautaro Moschet, aponta o caminho. “Para sair desta situação vai ser necessário que o novo governo haja rapidamente para eliminar o controle de capitais”.

O que é certo é que a liberalização da economia deixará lastro naquele país e não é certo que a recuperação seja possível. Em todo o caso, a Argentina servirá como laboratório para o resto do mundo. Nomadamente para ver o que o neoliberalismo mais radical poderá fazer a um país já fragilizado do ponto de vista económico e social.

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